Então não consegue ser moldada à perfeição. Não há forma que se aplique no seu caso. Seu descaso com as aparências é essencial. Veio nas entrelinhas que aprendeu a ler, ainda criança. Um mix de bala de jujuba, doce de leite de graxa e metáforas. Händel, Tchaikovsky, a avó tocando Bach no piano de armário no apartamento com cheiro de maresia e banha. "Você nunca vai ser a Nadia Comaneci". A família repleta de peitos e bundas e pernas e curvas. Aquela ginasta era tábua. Pulava 3 metros aos 2 anos de idade, treinava igual louca, não comia carboidratos. Enquanto fechava pastéis de queijo e presunto com a ajuda de um banquinho para alcançar o balcão enfarinhado, queria ser a ginasta. Realista preferiu os pastéis e as balas de jujuba. O doce de leite de graxa guardou como memória negativa, daquelas que puxamos quando 'a primeira impressão é a que fica', mas a banha, os pastéis, o papel na sociedade e os constantes e diários debates formaram uma forma meio ar, meio água, um bocado de terra e tão pouco fogo que até que é bom.
Levou muita surra, as doloridas, as de supetão e as que nem devia ter levado de fato, mas tagarelava tanto que acabou sobrando umas porradas.
Vida, sua engraçada! Um tombo com a cara no chão é melhor que cair num buraco. Esse mix de ar e água tornaram as coisas mais dinâmicas. Levou porrada, levanta! Perdeu os dentes, sorri de leve! Tantas coisas perdidas entre o relógio de mamãe e as oportunidades de ficar calada. Fugir das alcovas fazendo estrondo. Nada tão redondo quanto a Terra girando ao redor do Sol. Passam dias, meses, anos. Passa a vontade de ser ginasta e começa a vontade de coisas muito mais esquisitas. Vontades de artista, que reinventa a si mesmo e com o passar do tempo e a aceitação do que é de fato, orgulhoso exibe seu pastelão de comédia mexicana com aquele toque de Beckett e referência no Picasso.
Sem forma pré definida, rio que tudo arrasta quando as margens lhe comprimem, cansam as tentativas de molde. Faz tempo desde a descoberta do rio que não se molda, e as bostas resultantes dessa falta de espírito hipócrita já não mais reverberam em dimensões alarmantes. Tremem as estruturas, que talvez até sejam seguras por existirem os defeitos. Não existe jeito certo, levando em conta que uma hipótese pode ser comprovada de formas diferentes, chegar à luz da certeza não é teoria válida. Não saber de nada. Sentir. Sentir tão verdadeiramente que chegue a suspeitar que etiquetas sociais são bobagem. Verborragia a palavra errada. Ninguém sabe de nada. A gente só imagina e desperdiça energia em conversas inúteis. Quem não puxa o saco do cara que vai te foder amanhã e nem puxa o tapete de quem te ajudou, quem fala o que pensa e não se importa com aparências ganha a etiqueta de transgressor, agressor, vilão mór dos problemas. Espelhão gigantesco do ego alheio. Relação é espelho. Dinamismo é recomeço, sem temer os tropeços, quedas, porradas, agressões. A vida é tão bonita quando descobre que até pouco tempo atrás Matemática fazia parte da faculdade de Filosofia, que não é mais considerada Ciência por alguns acadêmicos ceticistas. E quando se chega a divisão do núcleo do átomo num Universo infinito, entende que mutações nas verdades são possíveis e percebe o rio que sem nenhum fator externo agressivo permanece nas margens que criou para si mesmo.
Referências usadas nesse texto: Cecília Meirelles, Elisabeth Bishop, Brecht, Luiz Fernando Guimarães, Clarice Lispector, Nietzsche, Platão, Luiz Gasparetto.